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Perdi a conta de quantas vezes ouvi dizer que é preciso ser cético com o ceticismo. Os proponentes desse metaceticismo acreditam estar sendo originais, quando estão sendo medievais. Literalmente. Santo Agostinho acreditou ter superado os acadêmicos, levando o ceticismo destes à última consequência.

Acima: Livro VI do “De Revolutionibus Orbium Cœlestium” (Copernicus, 1543)

DE CRÉDULOS E CÉTICOS

 

Publicado originalmente Observatório da Imprensa, edição de 23 de janeiro de 2002 (não mais disponível online)

 

“Poucos se dão ao trabalho de estudar lógica, porque todos se concebem suficientemente versados na arte de raciocinar. Mas eu observo que essa satisfação é limitada ao próprio raciocínio, e não se estende ao de outros homens.”

Charles Sanders Peirce

 

Michael Shermer não é um pensador do calibre de Richard Dawkins, Jared Diamond, Massimo Pigliucci ou Paul Kurtz, só para citar alguns expoentes do ceticismo organizado. Não é e nunca afetou sê-lo. O que Shermer faz, e bem, é prover um contraponto para a crescente expansão da pseudociência e da superstição nos meios de comunicação. Com sua coluna na Scientific American, seus livros de divulgação e suas aparições na TV, Shermer convida a pensar criticamente sobre absurdos que, de tão repetidos, fazem o leitor desavisado supor se não teriam um fundo de verdade. Por essa razão, a entrevista com Michael Shermer na edição de 9 de Janeiro da Veja deveria ser comemorada como uma pequena vitória do racionalismo num país e numa publicação que não se têm norteado por este. Não foi o que fez Ulisses Capozoli, presidente da Associação Brasileira de Jornalismo científico (ABJC).

No artigo “Ceticismo em excesso é uma forma de crendice”, para o Observatório da Imprensa, edição de 16 de janeiro de 2002, Capozoli critica uma suposta receita de Shermer para dizer o que está certo e o que está errado no mundo da ciência. Reli a entrevista para ver se achava lá a tal receita. Não achei. A afirmação mais próxima disso, e ainda assim bem distante da interpretação do jornalista, dá-se quando Shermer diz que a ciência “tem características de autocorreção que operam como a seleção natural. Para avançar, a ciência se livra dos erros e teorias obsoletas com enorme facilidade.”

Perdi a conta de quantas vezes ouvi dizer que é preciso ser cético com o ceticismo. Os proponentes desse metaceticismo acreditam estar sendo originais, quando estão sendo medievais. Literalmente. Santo Agostinho acreditou ter superado os acadêmicos, levando o ceticismo destes à última consequência, ao dizer “se duvido, no ato de duvidar tenho consciência de mim mesmo como o que duvida. Se me engano, sou, pois o que não é não se engana.” Com a formulação si fallor sum, Agostinho antecipa Descartes em doze séculos. De maneira menos sofisticada, os críticos do ceticismo contemporâneo enchem a boca ao desfiar a lista histórica de erros e fanatismos cometidos em nome da ciência, como se tivessem descoberto o teorema de Gödel do método científico. Acusam os céticos de fanatismo ou, como fez o escritor Robert Anton Wilson, de instaurar a “nova inquisição”. Inquisição que, se verdadeira, ainda procura o seu Torquemada. Mais delicados, mas não menos equivocados, são os que o associam ao reducionismo ou ao positivismo comtiano. Seria falta de intimidade com a filosofia da ciência, influência residual do relativismo cultural e do pensamento pós-moderno ou mero desconhecimento dos princípios do ceticismo contemporâneo?

A forma de ceticismo extremo criticada por Capozoli é aberrante. Será difícil encontrá-la hoje em cientista ou filósofo de expressão. Mais fácil, talvez, seja encontrá-la entre jornalistas e divulgadores. Criticando a fé cega na ciência, Capozoli diz: “a razão disso é que a ciência é uma atividade humana e não supra-humana como um ceticismo rasteiro sugere”, para, logo a seguir, resvalar no mesmo ceticismo extremo que critica, dizendo “por isso mesmo, em última instância, não há garantia de nada, apesar de todo o esforço para se garantir do erro.” Em deferência ao autor, prefiro atribuir essas observações ao descuido.

 

O novo ceticismo

O ceticismo contemporâneo, que Paul Kurtz chama de “novo ceticismo”, é bem distante do niilismo ou ceticismo radical, e mesmo do “ceticismo mitigado” de Hume. Seus tutores filosóficos são Charles Sanders Peirce e os filósofos pragmatistas americanos. Em seu famoso “The fixation of belief”, de 1887, Peirce mostra que os métodos usuais de eliminação da dúvida – a tenacidade, a autoridade e o a priori – são intrinsicamente instáveis, e rapidamente fazem ressurgir a dúvida que tencionavam eliminar. Peirce propõe que um método eficiente de fixação da crença deva ser buscado não em algo humano, mas em alguma permanência externa, algo sobre o qual o pensamento não tenha efeito. Já prevendo interpretações equivocadas, Peirce acrescenta “místicos imaginarão que têm um tal método na inspiração privada que lhes vem do alto, mas essa é apenas uma forma do método da tenacidade”. O único método capaz de superar as nossas opiniões intelectuais, segundo Peirce, é o científico.

Peirce também disse que cientistas são criadores de ícones. Assim, toda a teoria científica é um modelo que representa alguns aspectos da realidade, e pode sempre ser suplantado por outra representação mais fiel. Exemplo de ícone: E= mc2. Pesquisadores não imaginam que todos os aspectos da realidade sejam capturados pela teoria, e entendem que suas formulações são necessariamente provisórias. O ceticismo é parte intrínseca do processo de investigação. O cientista parte da dúvida para chegar a uma certeza transitória, operacional, que permita agir sobre a realidade.

 

O prêmio IgNobel

Ulisses Capozoli menciona o Prêmio IgNobel – aquele outorgado a pesquisas que não podem ou não devem ser reproduzidas. O prêmio é realmente muito engraçado, e a fascinação da imprensa por ele compreensível, mas o jornalista científico deve entendê-lo pelo que é – uma boutade – e não o imaginar como promotor do bom senso científico. O IgNobel contempla tudo o que puder ser relacionado, ainda que remotamente, à ciência e servir de motivo para piada. Existem disparates bem mais sérios que não se prestam ao humor. Seria difícil fazer graça com erros cometidos num cálculo iso-matemático da mecânica hadrônica, por exemplo. Isso é tarefa para especialistas.

Há muito tempo o IgNobel deixou de premiar exclusivamente idéias ridículas de pesquisadores científicos e passou também a contemplar políticos, religiosos, pseudo-cientistas e exploradores da crendice pública. Foi assim que o IgNobel de química de 1998 foi para o homeopata Jacques Benveniste, pela descoberta de que a água não apenas tem memória (esse foi o prêmio de 1991), mas que essa memória pode ser transmitida por telefone e pela Internet; ou o prêmio de literatura em 2000 foi para a australiana Jasmuheen, que no livro “Living on Light” explica que é possível se alimentar de luz. Deveríamos convidá-la para um visita ao Brejo da Cruz. Desmascarar esses charlatães é uma função útil do IgNobel, embora haja injustiças na escolha dos premiados.

Pesquisadores sérios foram alvo da brincadeira só porque os organizadores do IgNobel preferiram ridicularizá-los a deixar passar a chance da piada. Nolan, Stillwell e Sands, por exemplo, ganharam o IgNobel de medicina em 93 pela pesquisa “Acute Management of the Zipper-Entrapped Penis”. Por mais humorístico que o título soe ao leigo, qualquer pediatra poderá atestar que o problema é sério e bastante comum.

Citar exemplos históricos de erros da ciência, como faz Capozoli, é divertido e instrutivo. Só que esses exemplos mostram a força da ciência, não a sua fraqueza. Tirante os partidários da abominação intelectual recente chamada relativismo cultural – para os quais a realidade é um “construto linguístico-social” –, poucos duvidam que a ciência se aproxima assintoticamente do real, através de modelos de graus crescentes de iconicidade. O método científico não pode ser responsabilizado pelos erros de seus agentes, e dispõe de mecanismos contra estes. Cientistas são humanos, e, como humanos, arrogantes e vaidosos. O tão celebrado Galileu nunca reconheceu a contribuição de Kepler, apesar da correspondência que trocaram. Mas a autocorreção mencionada por Shermer funciona. É graças a ela, para ficar nos casos citados por Capozoli, que as opiniões errôneas de Lavoisier, Kepler, Dalton, Comte, Lysenko e Mendel foram revistas em muito menos tempo do que os 350 anos que a igreja católica levou para perdoar Galileu Galilei. Não fosse assim ainda estaríamos discutindo se é a Terra que gira em torno do Sol ou o contrário.

 

Copérnico, um covarde

Ulisses afirma que Copérnico só assumiu a autoria de sua obra no leito de morte, por temor aos céticos de seu tempo. A história não corrobora essa versão. Nicolau Copérnico, vigário de Allenstein e Frauerburg, era um covarde moral. Não temia os céticos, temia a igreja e seus dogmas. Arranjou para que suas idéias fossem publicadas pela primeira vez pelo discípulo Rethicus, com a condição de que seu nome não fosse mencionado. Combinou que o texto faria referência a um certo Dr. Nicolau de Torum – o próprio Copérnico. Tudo indica que o cuidado era desnecessário, pois a reação à idéia do Sol como o centro do universo só veio cerca de setenta anos mais tarde, com a perseguição a Galileu. A surpreendente falta de reação ao manuscrito de Rethicus encorajou-o a publicar os “Seis livros sobre a revolução das órbitas celestiais”, que só viu no leito de morte. Copérnico atrasou o quanto pôde a publicação do De revolutionibus por medo da ira dos que chamava de “aristotélicos e teólogos”. Assim, a entrada de Copérnico na história da ciência deu-se pela porta dos fundos, pois mesmo o prefácio de sua obra magna, escrito por Osiander, alertava o leitor para que não a tomasse seriamente, pois “as hipóteses nela descritas não são necessariamente verdadeiras ou mesmo prováveis”.

Nicolau Copérnico, Johannes Kepler e Galileu Galilei – treinados, respectivamente, em medicina, astrologia e matemática, todos os três religiosos – estão entre os que Arthur Koestler chamou de “sonâmbulos”, homens que intuíram a ciência moderna em meio ao mundo místico e populado de espíritos em que viviam. Koestler, apesar de grande divulgador, não foi um bom exemplo de rigor científico em suas crenças pessoais. De tanto alertar contra a húbris da ciência, ou melhor, contra a atitude filosófica resultante desta, acabou por tomar um caminho divergente, flertando com fenômenos paranormais e a pseudociência.

No começo deste texto falei da crescente expansão da pseudociência e superstição. Há dados indicando que nos EUA isso ocorreu de fato, principalmente nos últimos dez anos. Desconheço dados semelhantes para o Brasil, mas uma olhada em nossos meios de comunicação bastará para mostrar que a grafologia, astrologia, transcomunicação, terapias de vidas passadas, homeopatia, florais de Bach, e bobagens semelhantes vêm ganhando espaço. Os jornalistas científicos deveriam tratar de contrabalançar essa tendência, e não adotar uma posição dúbia quanto à aplicabilidade do método científico a essas crenças. Ao contrário do que Capozoli leva a crer, o pecado atual não é o excesso, mas a falta de ceticismo; o mal não é o reducionismo, mas o vale-tudismo – de gente que come luz a espíritos que falam através do celular.

Ulisses Capozoli já nos deu bons textos sobre ciência, aqui e em outras publicações. Sua crítica da entrevista de Michael Shermer à Veja – que teve falhas, mas não as apontadas por Capozoli – não foi um deles. Bem fez o Observatório ao botar-lhe o chapéu “Acredite se quiser”.

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