Se você é tão inteligente, por que ainda não ficou rico?
A ditadura da distribuição normal
Imagine que você esteja em uma sala com outras 99 pessoas. Digamos que média de altura (mais corretamente, estatura) das pessoas da sala seja 1,70 m. Alguns serão mais baixos, outros mais altos do que essa média. Imagine agora que Sultan Kösen, da Turquia, o homem mais alto entre as 7 bilhões de pessoas do mundo, entre na sala. Sultan tem 2,51 m de altura. Um gigante. Sua chegada à sala, porém, aumentaria a estatura média do grupo em míseros oito milímetros. Quase nada. Grandezas como a estatura humana formam o que chamamos de distribuição normal (não se intimide se você não gosta de matemática, evitarei usar jargão ou fórmulas). Colocadas em um gráfico, teriam essa forma:
Uma curva parecida resultaria se, em vez da altura, usássemos o peso corporal ou a performance no campeonato de cuspe à distância. Nenhuma pessoa é 1000 vezes mais pesada do que outra ou consegue cuspir 1000 vezes mais longe. Há um limite para a variação dessas grandezas.
O mesmo se dá com a inteligência. Se botássemos o QI humano em uma curva, ela teria uma forma parecida com a curva da estatura. Assim:
O valor médio do QI (Quociente de Inteligência) humano é 100. A grande maioria das pessoas está na vizinhança desse valor. Apenas 0.3% da população tem QI menor do que 55 ou maior do que 145.
Muitas das coisas com que lidamos todos os dias – a estatura, peso, distância da cuspida, habilidade atlética, horas de trabalho por mês, inteligência e talento – obedecem a matemática da curva normal. O dinheiro, não.
Jeff Bezos entra na sala
Vamos voltar à sala com 99 pessoas de estatura mediana do começo deste artigo. Desta vez iremos medir a riqueza das pessoas da sala. Imagine que são todos de classe média ou média alta, com idades variadas. Vamos dizer que o patrimônio das pessoas da sala seja 100 mil dólares. É razoável. Haverá ali umas poucas pessoas moderadamente ricas, com alguns milhões de dólares investidos em aplicações financeiras ou imóveis, e também pessoas jovens cujo valor pode ser até negativo, pois tomaram dinheiro emprestado do banco. De repente, entra na sala o Jeff Bezos, fundador da Amazon. O que acontece com a riqueza média da sala?
Da última vez em que conferi, Jeff Bezos era o homem mais rico do mundo, com uma fortuna avaliada em 112 bilhões de dólares, à frente de Bill Gates (90 bilhões) e Warren Buffett (84 bilhões). Jeff Bezos, com 1,70 de altura, não é alto. A estatura média da sala não mudaria com a sua entrada, mas a riqueza média por pessoa passaria de 100 mil dólares a mais de um bilhão e cento e vinte milhões de dólares.
Se dinheiro fosse estatura, a média das pessoas da sala continuaria sendo 1,70 m e Jeff Bezos teria mais ou menos 1120 quilômetros de altura. Para dar o crédito devido, o exemplo não é meu. Adaptei-o de “The Black Swan” (A Lógica do Cisne Negro, Editora Best Seller) de Nassim Taleb.
Ao contrário da estatura, peso, inteligência, etc, riqueza é uma quantidade escalável. Isto é, pode ser sempre aumentada. Assim, a distribuição da riqueza não é uma curva como a da distribuição normal. Se tentássemos desenhá-la do mesmo modo, ela ficaria mais ou menos com essa forma:
A forma exata desta curva irá variar de país para país, de ano para ano. O importante é notar que ela começa no zero, isto é, algumas pessoas não têm dinheiro algum (para simplificar, não inclui dívidas) e se estende bastante à direita. A grande maioria de nós está no calombo do lado esquerdo, mas a curva tem a chamada “cauda longa”, que se estende por uma grande distância à direita. Sabemos também que Jeff Bezos é o ponto mais extremo à direita dessa curva. Se imprimíssemos a figura acima na largura de uma folha de papel ofício, o fundador da Amazon estaria a algumas centenas de metros de distância à direita.
O efeito dessa “cauda longa” explica muita coisa sobre o mundo atual, pois nunca o fenômeno se revelou na história com tanta intensidade como agora, mas isso é assunto para um outro artigo. Neste, vamos nos focalizar na relação entre inteligência (ou talento) e riqueza.
Inteligência e dinheiro
Vimos que a inteligência, medida pelo QI, segue uma distribuição normal. Ninguém é 1000 vezes ou 10.000 vezes mais inteligente do que qualquer outra pessoa. Pelo menos não até a inteligência artificial geral ser desenvolvida (também assunto para outro artigo). O mesmo vale para horas efetivas de trabalho. Ninguém trabalha 1000 vezes mais do que outra pessoa. Na distribuição normal, todos valores estão agrupados simetricamente em torno de um valor médio.
Dinheiro é diferente. A riqueza de alguns indivíduos é bilhões de vezes maior do que a de outros. Com certeza eles não trabalharam um bilhão de vezes mais ou são um bilhão de vezes mais inteligentes ou talentosos. A distribuição de riqueza segue uma lei de potência, também chamada distribuição de Pareto.
Estamos tão acostumados a esse fenômeno que ele nos parece um fato natural da vida. Ainda no século 19, Vilfredo Pareto observou que 80% das terras na Itália pertenciam a 20% da população. O mesmo se dá com a riqueza do mundo. Por que a riqueza do mundo é concentrada nas mãos de uns poucos? Por que alguns indivíduos se tornam bilionários?
Três conterrâneos de Pareto, os italianos Pluchino, Biondo e Rapisarda (referência abaixo) tentaram responder a essa questão criando um modelo computacional do talento humano e da maneira como as pessoas o usam para explorar oportunidades na vida. Dizem eles no artigo:
“O paradigma meritocrático dominante na cultura altamente competitiva do mundo ocidental ancora-se na crença de que o sucesso é devido, principalmente, senão exclusivamente, a qualidades pessoais como o talento, inteligência, habilidades diversas, esperteza, esforço, diligência, trabalho duro ou coragem de assumir riscos. Às vezes, aceitamos até admitir que um certo grau de sorte pode ter um papel obtenção de um sucesso material significativo. Mas, na realidade, é comum to subestimar a importância de fatores externos nas histórias de sucesso individual.”
Pluchino e colegas resolveram simular o sucesso na vida para estudar a influência relativa do talento e da sorte no sucesso individual. Seu modelo é simples. O talento – as várias habilidades, inteligência, capacidade de trabalho, etc – é distribuido a um grande número de pessoas seguindo uma distribuição normal. Como ocorre na vida, algumas pessoas recebem uma quantidade maior de talento ou habilidades, mas ninguém é ordens de grandeza melhor do que ninguém. A partir daí, o modelo simula a vida de cada uma dessas pessoas virtuais por 40 anos. Ao longo de suas vidas, ocorrem eventos positivos (que aumentam a sua riqueza) e eventos negativos (que a diminuem) de maneira aleatória. Novamente, como na realidade.
Ao fim dos 40 anos simulados, Pluchino e colegas ordenaram os participantes virtuais do experimento em ordem de sucesso financeiro e os correlacionaram com o talento e a sorte. A conclusão, confirmada por várias versões diferentes do experimento: é a sorte. O sucesso máximo não coincide com o talento máximo. Os indivíduos mais bem-sucedidos não foram os mais talentosos, e sim os mais sortudos. Vale também para o oposto. Os indivíduos menos bem-sucedidos foram também os menos sortudos, não os menos talentosos.
Neste ponto, se você for como eu, deve estar pensando, “precisaria fazer esse experimento para me mostrar o que eu sempre soube?”. A coisa mais fascinante desse estudo não é essa conclusão; é uma outra. A equipe de Pluchino mostrou que a distribuição de riqueza resultante desse experimento é idêntica à observada no mundo real. Exatamente como mostrou Pareto, no século dezenove, 20% dos indivíduos acabaram por controlar 80% das riquezas. É a confirmação do modelo.
É bastante humana a tendência de atribuir nossos sucessos ao talento e nossos fracassos a fatores externos. Isso não impede a popularidade de livros escritos por empresários bem-sucedidos mostrando como chegaram lá graças ao trabalho, perseverança e talento. Talvez, nem tanto. Ninguém gosta de dizer que foi apenas sortudo, mas essa pesquisa deveria servir como uma nota de cautela. Histórias de sucesso, obviamente, são escritas pelos sortudos.
Os resultados de Pluchino reproduziram o mundo real. Sim, talento é importante. Não se vence na vida sem talento, muito menos se fica bilionário sem talento. Mas a sorte é fundamental. Taí um consolo. Talvez não nos falte talento. Não temos é sorte.
Referências
Pluchino, A.; Biondo, A. E.; Rapisarda, A. Talent vs Luck: the role of randomness in success and failure. arXiv:1802.07068, Feb 25, 2018.
Taleb, Nassim Nicholas, The Black Swan: The Impact of the Highly Improbable, Random House, 2007.
2 Comentários
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Excelente seu estudo, José. Minha convicção é de que seria aprovado por pensadores gregos, troianos e contemporâneos. Parabéns!
Sei não, Cristina. Quase todo o mundo que é rico ou bem sucedido acredita que chegou lá puramente por talento. A gente só acredita em sorte quando ela é ruim.