Aprendi nas aulas de catecismo que religião é questão de fé; e fé, sabemos, independe de experiência ou interpretação. Aceitam-se os pontos fundamentais e indiscutíveis da religião, qualquer religião, ou não se tem fé.
Acima: Pânico durante eclipse do sol. Não importa o quanto a ciência tenha avançado, humanos sempre interpretam eclipses como um sinal de algo.
IGNORÂNCIA DO OUTRO MUNDO
Publicado originalmente no Observatório da Imprensa de 27 de abril de 2004 – Edição 274.
Aprendi nas aulas de catecismo que religião é questão de fé; e fé, sabemos, independe de experiência ou interpretação. Aceitam-se os pontos fundamentais e indiscutíveis da religião, qualquer religião, ou não se tem fé.
Esse princípio simples, ensinado a meninos (naquele tempo as aulas de catecismo eram separadas por sexo) de 9 ou 10 anos, bastaria para responder a pergunta da revista IstoÉ (edição nº 1.803, de 28/4/2004). Na matéria ‘Saber do outro mundo’, a revista pergunta: ‘Ciência e religião não combinam, certo?’. Certíssimo. Não combinam mesmo, e a revista deveria parar por aí. A IstoÉ, no entanto, não parou, e o resultado foi uma das matérias mais mal informadas dos últimos tempos – o que não é pouco, considerando-se os padrões baixíssimos da imprensa brasileira.
O que existe nos EUA é a tentativa de grupos religiosos, notadamente os criacionistas, de tomar emprestado o prestígio da ciência para propalar as suas bobagens. O jornalista que confundir isso com ciência merece arder na chama azul de um bico de Bunsen.
No samba do jornalista doido da IstoÉ crenças tradicionais misturam-se com espiritismo, astrologia, umbanda, telepatia e bioenergética. Como seria tedioso fazer o inventário completo das tolices da matéria, examinaremos uns poucos pontos. De início, ficamos sabendo que nos Estados Unidos busca-se a aproximação entre ciência e religião. A IstoÉ deve dispor de fontes melhores do que a prestigiosa revista Nature. Em trabalho de 1998, Larson e Witham [LARSON, J. ; WITHAM, L. ‘Leading scientists still reject God’. Nature, v. 394, n. 6691, p. 313, 1998] mostraram que a crença em Deus entre os cientistas de elite diminuiu acentuadamente desde o começo do século e hoje é adotada por apenas 7% dos pesquisadores entrevistados. Isto é, 93% dos cientistas não têm religião.
Não há indícios de que a situação tenha mudado nos últimos seis anos. O que existe nos EUA é a tentativa de grupos religiosos, notadamente os criacionistas, de tomar emprestado o prestígio da ciência para propalar as suas bobagens. O jornalista que confundir isso com ciência merece arder na chama azul de um bico de Bunsen.
Por que essa imensa quantidade de ateus e agnósticos entre os cientistas de elite em comparação com o resto da população? Talvez a resposta esteja, como afirmou o bioquímico francês e ganhador do Nobel Jacques Monod (1910-1976), na crença dos cientistas na objetividade do universo. A evolução da ciência depende da idéia de que não há plano ou intenção no universo. O universo natural é honesto; revela-se tal como é, sem mudar de idéia conforme a conveniência do momento. Nesse universo científico não cabem eqüinos que falam, como a asna de Balaão (números 22:28), ou Menorás que ardem por oito dias com o óleo que não daria para mais de um dia. Os primeiros, porque são uma impossibilidade anatômica e neurofisiológica; os segundos, porque violam a primeira lei da termodinâmica. O universo objetivo de Monod é incompatível com praticamente todos os sistemas metafísicos e religiosos. Nele, deuses e espíritos não podem intervir e corrigir o rumo dos acontecimentos.
Erro de diagnóstico
A revista cita como exemplos de integração entre ciência e religião, entre outros, a Faculdade de Teologia Umbandista e o Seminário Teológico de Candomblé. É triste. Transformam-se tradições populares autênticas em simulacros risíveis da academia. Na cerimônia a que assisti num ilê de São Paulo, o axogum não me pareceu particularmente interessado em estudar a anatomia dos caprinos ao sacrificar o bode preto. Estou curioso para saber de que disciplina científica tratarão os acadêmicos do candomblé. Será que veremos o dia em que físicos nucleares farão um ebó de odú antes de cada novo experimento com luz síncrotron?
Não menos curiosa é a citação da Uniespírito e da Associação Médico-Espírita de São Paulo. A pesquisa em parapsicologia, tão popular nos anos 1970, foi praticamente abandonada como área de investigação científica séria. Em experimentos estatisticamente controlados, duplo-cego, nunca se comprovou a existência de espíritos ou a existência de qualquer fenômeno não explicável pelas leis da física.
Os espíritas dizem que espiritismo não é religião, e pode se conciliar com todos os cultos (Allan Kardec). Se não é religião é pseudociência, uma disciplina que ficou à margem da ciência por falta de comprovação experimental. O psiquiatra Sérgio Felipe de Oliveira, entrevistado para a matéria da IstoÉ, cita Jung. Má idéia para quem almeja a respeitabilidade científica. Até mesmo Freud, literato genial mas não exatamente o mais rigoroso dos cientistas, criticou a salada intelectual de Jung, que misturava filosofia, misticismo, astrologia e religião.
Em parágrafo confuso, intencionalmente ou não, IstoÉ cita as pesquisas do Núcleo de Estudos de Problemas Espirituais e Religiosos do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, de São Paulo. Afirma a revista que o grupo do psiquiatra Alexander Moreira de Almeida estudou as curas de um médium de Goiás, e diz que a possibilidade de fraude foi descartada pelo grupo. A que fraude estão se referindo? A da cirurgia ou a da pretensa cura? Porque, suspeito, ambas são fraudes.
Já assisti e mesmo fotografei algumas cirurgias realizadas por médiuns. Numa delas o ‘médico’ falava com o sotaque falso de alemão do cinema nacional, mas os cortes que fazia com o bisturi eram verdadeiros. Uma conversa de cinco minutos com seus conhecidos revelou que ele era enfermeiro e que ocasionalmente auxiliava em cirurgias. Notei que ele usava sulfa como anti-séptico. A explicação para as ‘curas’ podem ser várias, e todas naturais: efeito placebo, remissão espontânea, erro de diagnóstico etc. Há divergências de interpretação. Onde o grupo da USP vê um tópico para a investigação científica, eu vejo um caso de exercício ilegal da medicina. Da última vez em que conferi ainda era crime.
Prerrogativas milenares
O professor Álvaro Luiz Tronconi, físico da Universidade de Brasília, diz à IstoÉ que ele e os professores do Núcleo de Estudos de Fenômenos Paranormais estão querendo saber ‘por que a força do pensamento desorganiza a configuração dos átomos dos metais’, referindo-se ao entortador de talheres Luiz Carlos Amorim. Aparentemente o professor converteu-se à crença espiritual ao ser curado pela força mental de uma enfermeira. Ele agora quer ‘dominar a bioenergia e usá-la para teletransportar e curar doenças’, e também ‘medir a energia emitida pelas mãos e seus efeitos no crescimento de camundongos’.
Pensei em fazer piada mas perdi a vontade quando me lembrei que a Universidade de Brasília é sustentada pelo dinheiro público.
É curioso que acadêmicos se ocupem de um fenômeno que foi desmentido por uma menina de 11 anos – Emily Rosa – num experimento de feira de ciências [ROSA, L.; ROSA, E.; SARNER, L.; BARRETT S. ‘A close look at therapeutic touch’. JAMA, v.279 (13), p. 1005-10, 1998]. Se o professor Tronconi estiver certo, é caso para prêmio Nobel. Com um só golpe de colher entortada ele invalidará a física e a química modernas. Outros membros do grupo, como os engenheiros Paulo Celso dos Reis e Hiroshi Masuda, pesquisaram a astrologia concluíram que ela segue as leis da física. Contam com o suporte intelectual do autor de A química do amor, o astrólogo Francisco Seabra. Pensei em fazer piada mas perdi a vontade quando me lembrei que a Universidade de Brasília é sustentada pelo dinheiro público.
Finalizando, o artigo nos lembra que por muito tempo a astronomia e a astrologia andaram juntas. É verdade. E também a medicina andou junto com o curandeirismo, a química surgiu da alquimia e a matemática flertou com a numerologia. Acreditar somente no demonstrável e descartar o lixo místico foi uma das conquistas da ciência. A maioria dos grandes cientistas do passado era religiosa, e foi à custa de muita coragem e sacrifício pessoal que se desviaram da verdade propalada pela igreja. Não entendo a linha de raciocínio que recorre a exemplos históricos e superados para justificar uma visão anacrônica do que consistem áreas legítimas para a investigação científica.
O professor de história das religiões da Unesp Eduardo Basto de Albuquerque diz que ‘há uma minoria aguerrida que considera que a religião ainda impede a construção do conhecimento’. Com todo o respeito, o caro professor está errado. Não é uma minoria, é uma maioria composta por 93% dos cientistas de elite. E mais, há razões para acreditar que os 7% que se declaram religiosos não acreditam no deus antropomórfico e capaz de intervir nos afazeres humanos da maioria das crenças. Citando Beit-Hallahmi (1988), os autores do trabalho da Nature acima mencionado afirmam que entre os ganhadores do prêmio Nobel em ciências e, surpreendentemente, literatura, há um grau notável de irreligiosidade. Se o professor tem dados que os desmintam, que os divulgue. Se não os tem, não deveria fazer a afirmação. Em ciência, como no jogo do bicho, vale o escrito.
A religião impede a construção do conhecimento porque parte de conceitos apriorísticos. A crença em Deus não é tratada como hipótese, mas como verdade acima de qualquer questionamento. Isso é o oposto da ciência. Alguns cientistas contemporâneos, como o agnóstico Stephen Jay Gould, tentaram contemporizar insistindo na idéia dos ‘diferentes magistérios’ para separar os domínios da ciência dos da religião. O conceito é intelectualmente insatisfatório e apresenta problemas insuperáveis para a religião.
No instante em que a religião é autorizada a violar as leis da física, ela se torna objeto de questionamento científico; no instante em que a ciência investiga questões consideradas tradicionalmente transcendentais – a origem da vida e do universo –, ela invade o terreno da religião. Começando por Kepler e Galileu, a ciência foi empurrando Deus para cada vez mais longe dos homens. Se a religião aceitar as limitações do universo objetivo de Monod e explicações naturalísticas para a existência diária, Deus ficará limitado a uma descontinuidade fundamental do espaço-tempo, ou qualquer que seja a explicação cosmológica contemporânea. É disso que Stephen Hawking fala quando diz estar perto de ‘ler a mente de Deus’.
Como é improvável que religiões renunciem a prerrogativas milenares, continuaremos a assistir ao espetáculo desgraçado que José Saramago chamou de ‘fator Deus’, que tantas misérias causou e tantas outras causará.
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