O presidente Jair Bolsonaro chamou de “energúmeno” o educador Paulo Freire. De Bolsonaro não se poderia esperar mais. É pequeno moral e intelectualmente, um ignorante orgulhoso da própria ignorância — nisso não diferente do presidente Lula, que se gabava de nunca ter lido um livro. Mas o espetáculo mais triste nessa história é a adesão automática e entusiasmada dos bolsomínions à difamação que o presidente e seu filho Eduardo fazem a essa figura maior da intelectualidade brasileira. Anteriormente, Eduardo Bolsonaro já havia “desafiado a esquerda a dizer quem foi Paulo Freire e seu legado para a educação”.
Eu disse aqui mesmo que não seria preciso “desafiar a esquerda”. Qualquer pessoa instruída, de esquerda ou de direita, que tenha se informado em fontes mais confiáveis do que o YouTube ou o WhatsApp, sabe que Paulo Freire é referência em educação, inclusive aqui nos EUA, de onde escrevo. É simplesmente o terceiro autor mais citado em publicações acadêmicas na área de educação. Não há autor brasileiro tão presente nas estantes das bibliotecas das universidades do mundo. A sua “Pedagogia do Oprimido” foi traduzida para mais de vinte idiomas.
Paulo Freire nunca foi aplicado no Brasil, exceto em experimentos pontuais. Não foi aplicado por Haddad, que foi ministro da educação por sete anos nos governos de Lula e Dilma. Não foi aplicado pelo governo FHC. Se quisermos encontrar resquícios de Paulo Freire teremos que buscá-los no MOBRAL, o programa de alfabetização de adultos implantado nos distantes anos 60.
Mas eu dizia que a minha estupefação vem adesão entusiasmada dos bolsomínions. Gente que nunca se interessou por educação, a própria ou a dos outros, começou a arvorar-se em especialista em educação. Incapazes de juntar coerentemente dois parágrafos, esses energúmenos — e aqui, sim, a palavra está propriamente aplicada — responsabilizam Paulo Freire pelo estado precário da educação brasileira. Para eles, o antipetismo justifica qualquer barbaridade, inclusive a de manchar a imagem de um brasileiro de renome mundial.
Caros bolsomínions, vocês não sabem o que é o método Paulo Freire porque nunca leram sobre ele e jamais o viram na prática. O método Paulo Freire nunca foi aplicado no Brasil, exceto em experimentos pontuais. Não foi aplicado por Haddad, que foi ministro da educação por sete anos nos governos de Lula e Dilma. Não foi aplicado pelo governo FHC. Se quisermos encontrar resquícios de Paulo Freire teremos que buscá-los no MOBRAL, o programa de alfabetização de adultos implantado nos distantes anos 60. Embora o MOBRAL tenha distorcido alguns conceitos chaves do método Paulo Freire, é irônico que a única influência efetiva e em larga escala do método no Brasil tenha se dado na ditadura militar.
Mas o MOBRAL não foi uma experiência bem-sucedida. O movimento conseguiu alfabetizar menos de 15% de seus alunos, todos analfabetos com 15 anos ou mais de idade. O MOBRAL foi criado em substituição ao Movimento de Educação de Base e do Movimento da Cultura Popular, que utilizavam o método Paulo Freire mas eram incompatíveis ideologicamente com o novo governo. Embora influenciado pelo método Paulo Freire, o MOBRAL arrancou dele o essencial. Talvez por isso tenha fracassado. No método Paulo Freire, educação e a alfabetização devem partir de um exame crítico da realidade existencial dos educandos, trazendo à luz as origens de seus problemas e das possibilidades de superá-los. Os militares esvaziaram o programa desse elemento crítico, por considerá-lo subversivo, e centraram-se apenas no ensino da escrita e da leitura. Não interessava aos militares a formação de alunos com capacidade de relacionar fatos e ideias, de refletir sobre a própria existência, de abrir espaço para as contradições. Sem a dialética, o MOBRAL é um arremedo do método.
Tive privilégio de conhecer Paulo Freire em pessoa na casa de Mario Schenberg, nos anos 80. Me lembro que ele tinha medo dos gatos que passeavam livremente pela casa. Algumas pessoas têm medo de gatos. Era um homem doce, que tratava a todos com respeito e consideração. Conversamos sobre seu trabalho em Guiné-Bissau e Moçambique. Me ouvia com se eu não fosse o moleque que eu era na época, o que se alinha com a sua filosofia de educação.
Fica claro para quem conhece a sua obra que ela ameaça as estruturas de poder. É subversiva no sentido de que educação de qualidade é subversiva, libertadora. O método Paulo Freire valoriza o pensamento crítico, a transformação, a prática da liberdade. Isso não convém aos que manipulam a democracia em proveito próprio.
Não sei se Paulo Freire ainda é tão relevante quanto foi há cinquenta anos. Sou educador, mas não sou especialista em filosofia da educação. Acredito que a educação tenha que se adaptar aos tempos, à tecnologia e às mudanças que esta ocasiona na sociedade e na percepção humana. Mas não posso assistir calado o espetáculo patético de ignorantes tentando cobrir de lama a obra de um dos nossos intelectuais mais influentes.
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