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Acima: ilustração artística do COVID-19, ou coronavírus — assim chamado porque as projeções na sua superfície se assemelham às de uma coroa.

Diante de um tipo novo de ameaça, com riscos desconhecidos, a atitude mais racional é a cautela. O coronavírus (COVID-19) é uma dessas ameaças. Melhor adotar as medidas extremas recomendadas por epidemiologistas, apesar de seu custo financeiro e social imediato, do que arriscar o custo futuro, bem mais alto, de uma pandemia.

Muita gente costuma citar a SARS (SARS-CoV), a febre aviária (A/H5N1), o ebola, dengue, Zika, chikungunya, etc, como exemplos de infecções que tiveram seus riscos exagerados pelas autoridades, causando pânico na população. Essa observação ignora alguns fatos básicos:

  • Existem diferenças entre as formas de transmissão dessas várias doenças. O ebola requer contato com fluidos corporais de animais ou indivíduos infectados. A dengue, Zika e Chikungunya requerem um inseto como vetor. Já a SARS, febre aviária e o coronavírus são transmitidos por via aérea. Um simples espirro pode carregar o vírus até os pulmões de pessoas a dois metros de distância. A propagação aérea é muito eficiente.
  • É possível que pandemias tenham sido evitadas justamente pelas precauções tomadas. Imagine o que aconteceria se as autoridades não tivessem isolado os casos dessas infecções, alertado a população e adotado medidas extremas de cautela. Aliás, não é preciso imaginar. A SARS, cuja taxa de mortalidade é de 9,6%, matou apenas 8437 pessoas no mundo todo. A gripe espanhola de 1918-20 infectou 27% da população mundial e matou de 40 a 50 milhões de pessoas, em estimativa conservadora. Isso quando a população mundial era quatro vezes menor do que a atual. Naquela época os sistemas de saúde pública não sabiam lidar com epidemias e impedir que virassem pandemias.
  • O que se chama de “pânico” não tem a ver com as medidas de precaução, mas com a reação das pessoas a elas. Onde falta a compreensão dos princípios da epidemiologia e da estatística, talvez o medo seja uma ferramenta útil. Diante de um risco desconhecido é melhor exagerar nos cuidados, do que ficar impassível e morrer. O melhor mesmo seria agir racionalmente, tomar as precauções necessárias e não se apavorar, mas estamos falando de humanos, não de vulcanos do Star Trek.

Fukushima Daiichi: a explosão do reator nuclear em 2011 devido a um tsunami provocou o maior acidente nuclear desde Chernobyl. Mais de 154.000 pessoas tiveram que ser evacuadas devido ao vazamento de radiação.

Precauções deveriam ser proporcionais à escala do risco. Existe uma probabilidade muito grande de a humanidade sobreviver a um evento catastrófico único, mas uma probabilidade quase zero de sobreviver a exposições repetidas a eventos do mesmo tipo ao longo do tempo. Esse é um princípio tão importante quanto mal compreendido. Imagine que um país construa um reator nuclear em um local sujeito a terremotos e tsunamis, que são eventos raros e imprevisíveis. Imagine que esse lugar se chame Fukushima. O reator Fukushima Daiichi foi construído em 1967, funcionava desde 1971 e já havia sobrevivido a vários eventos críticos ao longo dos anos. Esse recorde de 50 anos sem catástrofes pode ter dado a seus operadores a certeza de que o reator era seguro. Isso até 11 março de 2011. Para quem sabe interpretar estatísticas de cauda longa, a ocorrência de uma catástrofe em Fukushima em um período longo era uma certeza matemática.

Princípio da Precaução

No caso de novas cepas de vírus, a humanidade sobreviveria a uma variedade um pouco mais letal ainda que nada fosse feito para conter a propagação da doença. A humanidade tal qual a conhecemos certamente não sobreviveria à múltiplas exposições a cepas diversas de vírus ao longo do tempo. Uma delas poderá ser a nova gripe espanhola ou algo ainda pior. O Princípio da Precaução se aplica.

As tradicionais análises de custo/benefício não podem ser usadas em situações onde a exposição a eventos de cauda longa implica em um risco desproporcionalmente alto de ruína completa [1]. Em termos leigos, isso quer dizer que se houver um risco global, ainda que minúsculo, que ainda não possa ser perfeitamente caracterizado por falta de informações, a cautela tem que ser extrema. E quase nada sabemos sobre o coronavírus. Não sabemos precisamente a taxa de infecção, a taxa de reprodução do vírus, a taxa de mortalidade, cofatores na mortalidade e a forma de propagação. Um caso isolado na Califórnia, de uma pessoa que não viajou e, aparentemente, não teve contato com pessoas infectadas mostra o quanto ignoramos os mecanismos de transmissão do coronavírus.

É bobagem argumentar que até agora se registraram apenas poucos casos de coronavírus no Brasil enquanto a diabetes, o câncer, a desnutrição, a gripe comum, etc, matam muito mais e, portanto, deveriam ter mais recursos. Concordo com mais recursos para a saúde, mas se você abrir o jornal amanhã e descobrir que 10 milhões de brasileiros morreram de repente, você nem por um instante irá pensar que morreram de diabetes ou de câncer. Não se pode comparar o risco previsível e quantificável de condições bem conhecidas com o risco de uma condição pouco conhecida de potencial efeito sistêmico. Na dúvida, cautela.

Observações preliminares indicam que número de fatalidades do coronavírus depende do sexo do portador. A probabilidade de morrer após a infecção é de 2.8% para homens e 1.7% para mulheres (OMS). Para simplificar, digamos que morrerão 2% dos infectados. Não é uma porcentagem pequena no caso de uma pandemia. Se apenas 10% da população contrair a doença, serão mais de 15 milhões de mortos no mundo, 400 mil deles só no Brasil. Esse número é conservador. A gripe comum afeta de 3% a 20% da população todo ano, dependendo da cepa do vírus. Pense no que aconteceria se 2% das pessoas que pegam gripe durante um dado ano falecessem. Quantos amigos e parentes você teria visto morrer de gripe durante os últimos dez anos? Você não os vê porque a taxa de mortalidade da gripe comum é de 0,05%. Isto é, o coronavírus é cerca de quarenta vezes (2,0 dividido por 0,05) mais fatal do que a gripe comum.

Temos que pensar também nos efeitos secundários. Os infectados que desenvolverem sintomas graves precisarão de hospitalização. Imagine o colapso do sistema de saúde. Portadores de outras doenças sérias irão falecer por falta de vagas nos hospitais. Há ainda as consequências imprevisíveis. Um exemplo: o FDA já alertou que há 60 tipos de medicamento cuja fabricação será afetada pela falta de um componente fabricado na China, cuja produção, por sua vez, está sendo afetada pelo coronavírus. O número pode ser maior. Assim, pacientes que necessitam desses medicamentos podem sofrer sérias consequências.

O argumento da ignorância

A medida mais eficaz para reduzir a disseminação da infecção, segundo os especialistas, é o isolamento físico, que impede a saída dos portadores do vírus. A transmissão do coronavírus, pelo que sabemos, depende da interação entre pessoas no mesmo espaço físico. Mas o isolamento pode ser ter sido iniciado tarde demais. Da China, a infecção já se espalhou pela Coreia do Sul e Itália. Casos isolados já foram registrados em mais de 55 países quando escrevo, segundo a Organização Mundial da Saúde. A esperança é contê-los localmente. Depois da China, a Itália já selou mais de dez cidades inteiras e agora discute o fechamento das fronteiras com seus vizinhos na Europa. Se não houver epidemia, agradeça às autoridades chinesas e italianas por terem feito a sua parte.

No começo dos anos oitenta você também não conhecia ninguém que tivesse sido infectado pelo HIV ou morrido de AIDS. Hoje você conhece. Foram 125 mil infectados e 15 mil mortos no Brasil.

Soluções ingênuas, supostamente mais humanas e respeitadoras dos direitos individuais, como rastrear potenciais portadores para futura comunicação são perigosas. Não sabemos, por exemplo, se pacientes assintomáticos são capazes de transmitir o vírus. Se forem, será tarde demais quando forem contactados. Cada um deles já terá infectados várias outras pessoas. A solução mais humana e mais respeitadora dos direitos coletivos é fazer o que recomendam os especialistas em saúde pública.

Afirmações sobre o coronavírus como temos visto na mídia social, de que há uma paranoia em torno do assunto, de que o pânico é exagerado, são inconsequentes. Frequentemente recorrem à falácia conhecida como argumentum ad ignorantiam (argumento da ignorância) que consiste em dizer “eu não conheço alguém que tenha sido infectado por coronavírus, logo ele não é perigoso”. No começo dos anos oitenta você também não conhecia ninguém que tivesse sido infectado pelo HIV ou morrido de AIDS. Hoje você conhece. Foram 125 mil infectados e 15 mil mortos. Poderia ter sido pior se não fosse pelo programa brasileiro de combate à AIDS, que foi modelo no mundo. O “pânico” propagado na época fez com que muita gente evitasse comportamentos de risco, o que certamente diminuiu a transmissão da doença.

Ideologia

Pior ainda quando os palpites são motivados ideologicamente, alegando que se trata de uma conspiração racista contra os asiáticos, a favor de interesses escusos dos americanos. Ou de ações discriminatórias contra os chineses, justo eles, que foram os primeiros a detectar o perigo. Ou de atitudes malévolas da indústria farmacêutica, ignorando o detalhe não-insignificante de não existir medicamento eficaz contra a doença. Apesar de afrontar a lógica, esse tipo de pensamento encontra ressonância — surpresa! — em uma certa ala da esquerda. Em situações que envolvem a saúde pública, esse pensamento é perigoso. Epidemias e pandemias não têm preferências políticas. A realidade dos vírus e das infecções não é aberta a interpretações ideológicas. A ameaça é real e só intervenções reais, baseadas no conhecimento científico, podem diminuir o risco que todos corremos. As medidas de restrição da mobilidade de populações afetadas e a automonitoramento pelas próprias comunidades em risco são essenciais. Outras medidas básicas ajudam, mas não são suficientes. Não é fácil ser cauteloso a respeito de um perigo que nem imaginávamos existir, mas é preciso.

[1] Norman, J; Bar-Yam, Y. and Taleb, N. Systemic risk of pandemic via novel pathogens – Coronavirus: A note. New England Complex Systems Institute, January 26, 2020.

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