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A postulação da força centrífuga é um desses erros renitentes, que atravessam o tempo perpetuados por livros didáticos e divulgadores que copiam-se mutuamente. Alguns físicos a chamam de “pseudo-força” ou “força fictícia”, pois não se origina de nenhuma interação.

Acima: Space Shuttle Columbia (OV-102, Foto: NASA)

O DESASTRE DO COLUMBIA E AS FORÇAS FICTÍCIAS

 

Publicado originalmente Observatório da Imprensa, edição de fevereiro de 2003 (não mais disponível online)

 

Columbia explode e mata sete – com pequenas variações, essa foi a manchete dos principais jornais do país no dia 2 de fevereiro último. Excetuando-se uns poucos veículos, como o jornal O Estado de S. Paulo, a imprensa brasileira seguiu o seu padrão habitual de servir ao leitor a notícia requentada da Internet, do rádio e da TV. Diante da tragédia tecnológica e humana, a imprensa preferiu o folhetim à análise. Notadamente a análise científica.

No artigo “O legado do Columbia”, do Observatório da Imprensa da semana passada, o jornalista Ulisses Capozzoli lamenta que a imprensa perca-se em detalhes irrelevantes e deixe passar a oportunidade de trabalhar conceitos científicos interessantes. Um deles, segundo o jornalista, é a idéia de “gravidade zero”. Conceito tão interessante quanto traiçoeiro, pois a explicação que Capozolli oferece para o fenômeno é incorreta.

Diz ele, lá pelo meio do texto:

“A imponderabilidade (ausência de peso) em órbita é resultado da interação de duas forças, a centrípeta e a centrífuga. […] A centrípeta é a própria atração da gravidade, enquanto a centrífuga é a tendência da nave de escapar como uma pedra presa à ponta de um cordel que um experimentador faz girar em torno de sua mão. Se o cordel se parte, a força centrífuga lança a pedra à distância, impulsionada pelo movimento da mão do experimentador.”

A aparente ausência de peso dos astronautas, ou de qualquer corpo em órbita, deve-se ao fato de a gravidade puxá-los para baixo enquanto a sua inércia tenta mantê-los viajando em linha reta. É como se estivessem constantemente “caindo” sem nunca chegar ao chão. E nunca chegam ao chão porque, do ponto de vista da espaçonave, que tenta mover-se em linha reta, a superfície da Terra também está constantemente caindo. A sensação de ausência de peso advém da inexistência de forças de contato, já que a gravidade não deixa de agir no espaço.

Na órbita do Columbia, de 250 km de altura, a gravidade é apenas 8% menor do que na superfície da Terra. Em condições normais, experimentamos a sensação de peso devido à reação que os objetos oferecem à força que os atrai para o centro da Terra. Quando nos sentamos, nosso corpo empurra a cadeira para baixo, e a cadeira nos empurra para cima; quando estamos em pé, empurramos a Terra para baixo com os pés e ela os empurra para cima. Forças de contato aparecem sempre que seguramos e manipulamos objetos na Terra. Assim, embora a gravidade continue a agir no espaço, todos os objetos “caem” junto com o observador e não há qualquer interação que possa criar forças de contato. Um efeito semelhante é experimentado num elevador em queda livre ou num avião em mergulho. Para a pesquisa científica, e também para o treinamento de astronautas, a NASA utiliza o “Cometa do Vômito” – um KC135A modificado para permitir longos mergulhos. Apesar do mau gosto do nome, a aeronave permite experimentar por até 25 segundos a sensação de ausência de peso.

Já a força centrífuga mencionada por Capozzoli, essa não existe. Ou melhor, não existe em referenciais inerciais, necessários para a aplicação das leis de Newton que foram mencionadas no artigo. A discussão do assunto é um tanto técnica para ser tratada aqui, mas a sua demonstração é bem simples. Basta que o experimentador mencionado de um dos parágrafo acima, o que gira a pedra, deixe escapar o cordel que a prende. Livre da força centrípeta aplicada pelo cordel, a pedra sai em linha reta, em direção tangente ao movimento.

 

Já a força centrífuga mencionada por Capozzoli, essa não existe. Ou melhor, não existe em referenciais inerciais, necessários para a aplicação das leis de Newton que foram mencionadas no artigo.

 

A postulação da força centrífuga é um desses erros renitentes, que atravessam o tempo perpetuados por livros didáticos e divulgadores que copiam-se mutuamente. Alguns físicos a chamam de “pseudo-força” ou “força fictícia”, pois não se origina de nenhuma interação. Seria mais apropriado chamá-la de “força virtual”, já que ela pode aparecer quando tentamos analisar o sistema a partir de um referencial não-inercial. Ao invocá-la, Capozzoli não erra sozinho. O website da NASA menciona a força centrífuga em vários de seus artigos, sem explicitar o tipo de referencial considerado. Com certeza tal erro não foi cometido pelos cientistas encarregados dos cálculos de órbita, ou jamais teriam chegado à Lua.

De qualquer forma, os assuntos ligados às diferentes condições no espaço são fascinantes se abordados em linguagem acessível, e pouco explorados pela imprensa. Um dos primeiros divulgadores da ciência a prever a ausência de peso no espaço foi Júlio Verne em seus romances “Da Terra à Lua” (1865) e “Viagem ao redor da Lua” (1869). Júlio Verne orgulhava-se da exatidão científica de seus livros, embora estes exibissem alguns erros mesmo à luz da ciência de seu tempo. Nos dois romances citados, Verne previu que os astronautas experimentariam a ausência de peso apenas em determinado ponto da viagem, no qual a gravidade da Lua cancelaria a da Terra. Apesar da ciência que contém estar desatualizada, a leitura das viagens extraordinárias do genial Verne deveria ser estimulada entre os jovens. Entre os seus leitores mais assíduos, Verne contava com o jovem Alberto Santos Dumont. Quem sabe não teria sido Verne quem levou o brasileiro a sonhar em conquistar a imensidão azul do céu?

Os jornalistas científicos de hoje cumprem parte do papel que coube a Júlio Verne no passado, quando divulgam de forma acessível a ciência e a tecnologia. Num país em que escritores, intelectuais e humanistas parecem orgulhar-se de sua ignorância científica e tecnológica, a função é ainda mais importante. Entender a ciência e a tecnologia de nosso tempo é questão de cidadania. De que outra maneira se poderia opinar sobre a construção de usinas nucleares, alimentos transgênicos, investimento em tecnologia aeroespacial, biodiversidade, e outros temas contemporâneos tão relevantes? O que não se pode fazer é esquecer da ciência no jornalismo científico.

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