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Permitam-me contar um caso pessoal, pois ele tem implicações para o tema central deste texto. Eu dirigia por uma avenida larga e de alta velocidade aqui em Austin, onde moro, com minha mulher ao lado. Ao me aproximar da faixa para pedestres, devidamente sinalizada, vi que uma garota e seu cão esperavam na calçada para atravessar a rua. Parei, como manda a lei, achando que um carro que vinha lá atrás faria o mesmo. A garota começou a atravessar, puxando o cão pela guia. O carro de trás não parou. No que me pareceram segundos intermináveis, vi-o aumentar de tamanho no espelho retrovisor sem diminuir em nada a velocidade. Olhei para a frente e vi a garota entrar bem na mira dele. Não ouvi barulho de freios. O atropelamento era quase inevitável, mas a garota teve reflexos rápidos. Deu um salto para a frente e o carro passou raspando entre nós e ela. O cão não teve a mesma sorte. Foi atingido de leve e soltou um uivo de dor. O motorista do outro carro freou ruidosamente alguns metros adiante, provavelmente abalado pelo que acabara de acontecer. Aparentemente, nem a garota nem o cão sofreram consequências permanentes além do susto.

Imaginei como aquele acontecimento banal poderia ter tido consequências dramáticas para as vidas de todos nós, incluindo a do cão. Os cenários que ensaiamos na cabeça tendem a ser piores do que a realidade. Ainda tremendo, disse para a minha mulher que eu jamais me perdoaria se a garota ou o cão tivessem sido feridos ou mortos. Eu deveria ter notado que um outro carro tentava me ultrapassar em alta velocidade e não deveria ter diminuído a velocidade ou parado. Parar encorajou a garota a atravessar a rua. Minha mulher discordou. Disse que eu fiz a coisa certa. Parar para pedestres é o que manda a lei. O outro motorista estava errado. Discutimos isso por alguns minutos. Percebi que, naquele momento, eu era um consequencialista e a minha mulher era uma não-consequencialista ou deontologista.

Consequencialismo e não-consequencialismo (ou deontologia) são duas teorias diferentes da ética. O consequencialismo diz que as ações são boas ou más dependendo de suas consequências ou de seus resultados. Minha ação de parar para um pedestre atravessar a rua foi má porque resultou em risco para o pedestre. Não previ direito as suas consequências. Eu poderia ter quebrado a lei (não parado) e evitado colocar em risco uma vida. No consequencialismo (especialmente na variação chamada utilitarismo) um bem maior (salvar uma vida) sobrepuja um mal menor (quebrar a lei).

Os brasileiros tendem a ser consequencialistas extremos. Isso está na raiz de muitos de nossos problemas.

 

A ética não-consequencialista, ao contrário, diz que ações são intrinsicamente boas ou más, independentemente de suas consequências. Assim, variações do não-consequencialismo são baseadas nas regras, na lei ou na noção de dever, no caso dever moral, o que achamos moralmente correto. O julgamento da minha mulher foi não-consequencialista porque, independentemente do resultado ou das consequências das minhas ações — que, felizmente, não foram dramáticas — eu fiz o que a lei manda.

O consequencialismo é claramente superior, certo? O que importa são os resultados, o bem maior para o indivíduo ou a sociedade. Hmmm… Não tão rápido. Cada uma das teorias da ética normativa – é esse o nome técnico – tem defensores de peso. Além do que, há uma terceira via, a ética da virtude. E mais, na realidade quase ninguém pratica exclusivamente uma modalidade ou outra. Acredito que diferentes culturas tenham preferências distintas por uma dessas maneiras de pensar. Os brasileiros tendem a ser consequencialistas extremos. Isso está na raiz de muitos de nossos problemas.

O consequencialismo é atraente. Imagine que você seja um francês na Segunda Guerra Mundial. Soldados nazistas invadem a sua propriedade e perguntam se você está escondendo judeus. Você está. Tem uma família judia escondida em seu porão. O que você responde? Um não-consequencialista extremo que acredite que mentir é errado, diria que você deve dizer a verdade. Mas nessa situação, nenhuma pessoa decente e fora do espectro autista diria a verdade. O bem maior (evitar o sofrimento humano) sobrepuja o mal menor (mentir). O problema é que os soldados nazistas podem estar pensando da mesma maneira consequencialista. Para eles, o bem maior (o sucesso de uma sociedade futura de raça ariana) sobrepuja o mal menor (matar judeus e, ocasionalmente, algum francês mentiroso). O consequencialismo leva à flexibilização de nossas ações, o que não é ruim em si, mas se torna ruim quando conduz ao eterno ciclo de que “os fins justificam os meios”.

Brasileiros que vão para países como os EUA, Canadá ou Japão ficam assustados com a “falta de flexibilidade” das leis, das regras e das pessoas.

 

Brasileiros que vão para países como os EUA, Canadá ou Japão ficam assustados com a “falta de flexibilidade” das leis, das regras e das pessoas. Não é que os cidadãos desses países sejam não-consequencialistas absolutos, porém, mais do que as dos brasileiros, suas vidas são regidas por princípios. É frustrante para um brasileiro ver alguém ser posto em liberdade por um detalhe técnico no processo, quando é “óbvio” que o sujeito é culpado. Para os americanos, independentemente da culpabilidade do acusado, o cumprimento da lei é o princípio que deve prevalecer. No Japão, prevalece a noção de “honra”, de sempre fazer o que é mais nobre. Políticos apanhados em atos de corrupção cometem suicídio pela vergonha de ter “desonrado” a família. Pense em atos de coragem, grandeza e heroísmo. Quase sempre, por trás deles está o sacrifício do ganho imediato em favor da defesa de um princípio maior.

No Brasil, sempre encontramos formas criativas e indiretas de burlar leis que nos impeçam de atingir o resultado que julgamos correto. E não falo apenas de tentativas conscientes de “tirar vantagem”. Cidadãos honestos fazem isso o tempo todo. Temos um talento imenso para justificar nossos desvios da lei e das regras em nome de um suposto bem maior. Na política, isso nos trouxe à situação em que estamos. Mais sobre o assunto em outro artigo.

 

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