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“Livre pensar é para os que estão dispostos a usar a mente sem preconceito ou medo de entender coisas que contrariem seus hábitos, privilégios ou crenças. Esse estado da mente não é comum, mas é essencial para se pensar direito…” — Leo Tolstoy

 

Acima: Summa Theologiae, de Tomás de Aquino (1265-1274)

O MAL MENOR

ou

Porque anularei meu voto no segundo turno

Essa postagem é para os que, como eu, têm objeções éticas ou morais aos dois candidatos dos extremos que disputarão o segundo turno das eleições de 2018. Imagino que você, tanto quanto eu, saiba o que é receber críticas de ambos os lados por ficar “em cima do muro”, tentar “manter as mãos limpas em um jogo sujo” ou qualquer outra afirmação desqualificadora. No meu caso, ela vem acompanhada de “você mora no exterior e não sofre as consequências de sua decisão”. Pode ser até que você se pergunte se não é covardia anular o voto neste momento crítico do país. Escrevi este texto para lhe assegurar que não. Anular o voto é uma opção perfeitamente ética e consciente.

O assunto foi discutido à exaustão aqui nos EUA, onde moro, durante a última eleição presidencial. Eleitores republicanos e democratas viveram esse dilema. Os republicanos porque, mesmo se recusando a votar em Hillary Clinton, tinham objeções morais – não infundadas – a votar em Donald Trump. Alguns democratas, por sua vez, não votariam em Trump de maneira alguma, mas prefeririam que Bernie Sanders tivesse sido o candidato democrata e não Hillary, que não aprovam. Como nos EUA o voto não é obrigatório, muitos simplesmente poderiam deixar de votar. Sofreram intensa pressão. Nessa ocasião foi cunhado o acrônimo LEV (Lesser Evil Voting), pelos que diziam que a obrigação de todo o cidadão era votar no mal menor. Não é tão simples.

 

O “mal menor” em filosofia

(pule esse trecho se você não gosta de elucubrações intelectuais)

Há situações em que é fácil decidir. Na Segunda Grande Guerra não era difícil distinguir o lado bom do lado mau, e poucas pessoas tiveram dúvidas sobre que lado apoiar, embora nem sempre apoiassem o mesmo lado. Se você acha que essa é a situação no Brasil, vá em frente e vote no seu candidato. O problema ocorre em situações em que você avalia que um lado é mau e o outro muito mau. Diz o senso comum que nessas situações devemos tapar o nariz e votar no “mal menor”. Essa maneira de pensar é conhecida como consequencialismo, e diz que o valor ético de uma ação é determinado por suas consequências. Assim, seria ético votar no suposto mal menor porque suas consequências seriam mais favoráveis do que a alternativa. Uma variante do consequencialismo é o utilitarismo, que diz que o que importa no final é a utilidade da ação, definida aritmeticamente como as consequências boas menos as consequências más. Outra maneira de dizer isso é que o utilitarismo busca o maior bem para o maior número de pessoas, ou o menor mal para o menor número de pessoas. Na função utilitária, matar 99 pessoas é melhor do que matar 100 pessoas.

 

“…os que escolhem o mal menor se esquecem rapidamente que escolheram o mal.”

— Hannah Arendt,

 

Muitos filósofos consideram a tese do “mal menor” uma falácia. Líderes religiosos são bastante claros a esse respeito. Quando cristãos se defrontam com duas opções imorais, não é possível racionalizar o voto para a imoralidade ou injustiça porque consideramos uma das alternativas pior do que a outra, ou um “mal menor”. Nisso são amparados por Tomás de Aquino, o filósofo e teólogo católico que disse: “Não se pode justificar uma ação má feita com boa intenção” (São Tomás de Aquino, In duo praec. caritatis, c.6). Isto é, se você ajudar a eleger alguém que acredita ser mau está cometendo uma má ação, e não importa se a sua intenção foi a de evitar um mal maior. Não sou religioso, mas concordo plenamente com esse princípio. Como dizem os americanos, “a estrada para o Inferno é coberta de boas intenções.”

Note que estamos falando aqui do mal, não de uma pequena conveniência ou preferência; falamos de algo que viola os princípios éticos e morais de quem faz a escolha. Assim, o julgamento só pode ser feito pelo indivíduo e sua consciência. O julgamento de outros não tem lugar aqui.

Hannah Arendt, a filósofa e teórica da política, cunhou a expressão “banalidade do mal” para explicar como pessoas comuns podem se tornar agentes involuntários em sistemas totalitários. Ensina Arendt:

 

“Ao se defrontar com dois males, diz o argumento, é seu dever optar pelo mal menor, e seria irresponsável furtar-se à escolha. Os que denunciam a falácia moral desse argumento são geralmente acusados de praticar um moralismo estéril, de serem indiferentes às circunstâncias da política, de não quererem sujar as mãos. […] A fraqueza desse argumento é que os que escolhem o mal menor se esquecem rapidamente que escolheram o mal.” — Hannah Arendt, “Personal Responsibility Under Dictatorship,” in Responsibility and Judgment (2003).

 

Muitos argumentam que, como Arendt falava sobre o nazismo, o termo “mal menor” perde a força quando aplicado a situações menos extremas. Não é verdade. A desculpa do mal menor é uma estratégia usada intencionalmente por regimes autoritários. De mal menor em mal menor se chega, gradualmente, ao mal absoluto. A falácia do mal menor persiste porque é mais fácil se deixar levar por categorias e fórmulas profundamente entranhadas na psique humana pensar do que aprender pela experiência. Arendt não parou por aí. Afirmou que, “ninguém tem o direito de obedecer”, frase que ela diz ter extraído de Kant. Relativamente enigmática, essa frase já provocou muita discussão. Na minha interpretação, Arendt quis dizer que obedecer cegamente a ordens não é um direito. É dever ético do indivíduo resistir à tentação totalitarista, recusar-se a cumprir ordens injustas e estar ciente do significado de suas ações.

O filósofo britânico contemporâneo Bernard Williams afirmou que nossa integridade será roubada se formos forçados a abandonar nossos ideais a cada vez que o mundo conspira para torná-los pouco práticos. Em outras palavras, não devemos sucumbir à tendência utilitarista de seguir — “só desta vez” — a direção mais favorável. Williams diz que o efeito de escolher, dos males, o menor ignora o efeito moral sobre o mundo. Pessoas são atores morais, com intenções e projetos. O pensamento utilitarista esvazia essa distinção, nos transformando em meros veículos vazios através dos quais as consequências se manifestam. Decisões morais devem preservar nossa identidade psicológica e integridade. Devemos rejeitar qualquer sistema que reduza decisões morais a um algoritmo.

Ao escolher o mal menor, diminuímos a chance de um dia viabilizar a nossa própria direção. Ainda, segundo Williams, ao adotar o utilitarismo o agente age por influência externa. Isso me parece claro nas eleições. Ao votar no candidato mais bem posicionado para derrotar o candidato que odiamos, criamos a tendência de perpetuar no poder os políticos demagogos, pois são eles que conseguem maior vantagem inicial ao explorar os medos, desejos e preconceitos da população. Uma candidatura que seria minoritária, se a preferência geral fosse respeitada, acaba crescendo rapidamente graças aos votos para o “mal menor”.

 

Porque não posso votar no PT

Digo PT, e não Haddad, por razões que são óbvias para qualquer observador isento. Haddad não é o candidato à presidência, é mero representante de seu partido. Não há nada profundamente errado com isso. No regime parlamentarista é assim que a representação funciona. Meu problema com Haddad é o partido de Haddad.

Não descreverei em detalhes as razões para não votar no PT. Já gastei muito teclado com isso. Eu acho simplesmente inacreditável que o partido — depois de ter arruinado o país, se envolvido em escândalos monstruosos, aparelhado os órgãos públicos de corruptos, mentido a não mais poder, colocado incompetentes em posições chaves, apoiado ditaduras — seja incapaz de qualquer autocrítica. Pior, ainda idolatram um megalomaníaco narcisista, cuja única preocupação é a própria sobrevivência. Os petistas acreditam na miragem de que são os únicos e legítimos guardiães da justiça social. Se eu acreditasse na proposta socialista do PT (espero que esteja claro que não acredito) eu lutaria para que o partido fizesse um mea culpa, expurgasse de seus quadros notórios corruptos e abandonasse a sua insistência em teses falidas (do “é golpe” ao “Lula livre”). Mas, então, não seria mais o PT. Seria um partido de esquerda coerente.

Assim, não posso votar no PT porque isso seria dar carta branca aos que acham que a corrupção é um problema menor diante do bem que supostamente fazem ao trabalhador. Eu me tornaria cúmplice dessa corrupção.

 

Porque não posso votar em Bolsonaro

Votei em João Amoêdo no primeiro turno, o candidato que mais se aproxima de um liberal autêntico nessa mistura toda. Os ideais liberais não são apenas econômicos. Devem incluir a defesa da liberdade — de crença, de preferência sexual, de oportunidades, de escolha, de ser quem você quiser — em todas as esferas. Previ que iria haver um segundo turno e disse aos amigos que quando ele chegasse votaria em Bolsonaro. Estava ainda sob a influência da noção do “mal menor”. No entanto, depois de examinar a minha consciência e estudar um pouco mais o assunto, resolvi que não poderia votar em um homem que viola tão profundamente valores que me são essenciais. Se você é uma pessoa que crê no poder das ideias, sabe que existe uma hierarquia na escala de valores. Você pode não gostar de mentir, mas, se precisar mentir para salvar uma vida, eu espero que não hesite. O bem que se faz ao salvar uma vida é superior ao mal que se faz ao dizer uma mentira. A hierarquia é clara. É dever de todo ser humano lutar pela preservação de valores essenciais mesmo à custa de perdas pessoais ou de violar valores não-essenciais.

O bem que Bolsonaro promete fazer é combater a corrupção. Não é pouco, mas não é suficiente, na minha escala de valores, para compensar o mal que fará aos direitos humanos, aos direitos das minorias e da mulher, ao meio ambiente, à cultura e à coesão da nação brasileira. Lula criou, até para sobreviver politicamente, a divisão artificial do Brasil em nós e eles. Bolsonaro, como todo demagogo, ampliou-a. Sua campanha é baseada principalmente no desprezo pelo adversário. O que apresentou até agora à guisa de programa de governo é insuficiente. Seus partidários dizem que ele é “rude”, mas honesto, e que suas frases foram tiradas fora de contexto. Me expliquem, por favor, em que contexto, neste ou em um universo paralelo, as seguintes frases são aceitáveis:

 

“O erro da ditadura foi torturar e não matar.” — Entrevista programa ao Pânico na TV, 2016

“Seria incapaz de amar um filho homossexual. Prefiro que um filho meu morra num acidente.” — Entrevista à Playboy, 2011

“Jamais ia estuprar você porque você não merece. Vagabunda.” — Discussão filmada com a deputada Maria do Rosário, em 2013

“Quem procura osso é cachorro.” — Cartaz fixado na porta de seu gabinete, sobre a busca de famílias pelos restos mortais de seus parentes desaparecidos durante a ditadura

“Nenhum pai tem orgulho de ter um filho gay. A sociedade brasileira não gosta de homossexuais.” — Entrevista ao cineasta inglês Stephen Fry, em 2013

“O filho começa a ficar assim meio gayzinho, leva um coro e ele muda o comportamento.” — Bolsonaro afirmou isso quando ainda fazia parte da Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) da Câmara dos Deputados, em 2010.

“Eu fui num quilombola. O afrodescendente mais leve lá pesava 7 arrobas. Não fazem nada! Nem pra procriador eles servem mais.” — Palestra no Rio de Janeiro, em 2017

“Eu sou favorável à tortura, e o povo é favorável a isso também. Através do voto você não vai mudar nada neste país, absolutamente nada. Você só vai mudar quando um dia nós partirmos para uma guerra civil aqui dentro. E fazendo um trabalho que o regime militar não fez: matando uns 30 mil! Começando com o FHC! Matando! Se vai morrer alguns inocentes, tudo bem, toda guerra morre inocente.” — Entrevista para a TV Bandeirantes, em 1999

“Eu não empregaria [mulheres e homens] com o mesmo salário. Mas tem muita mulher que é competente.” — Entrevista para a Rede TV!, em 2016, explicando que mulher deve ganhar menos porque engravida.

“As minorias se adequam ou simplesmente desapareçam.” — Discurso em Campina Grande, 10/02/2017

“Não tem essa historinha de estado laico, não. É estado cristão.” — idem

“Eu espero que acabe hoje, enfartada ou com câncer, de qualquer maneira.” — Ao lhe perguntarem se o mandato da ex-presidente Dilma deveria acabar.

 

Se você acredita que um homem que diz essas coisas tem estatura moral para ser o presidente de uma das maiores economias do mundo, sua tolerância a cafajestes é muito maior do que a minha e a da maior parte do mundo civilizado. Essas não são afirmações ocasionais, proferidas em um momento impensado. Foram repetidas e confirmadas à exaustão. Refletem o pensamento do candidato.

Assim, não posso votar no candidato Jair Bolsonaro sem ferir princípios que me são caros. Poderia discutir a baixa probabilidade de sucesso do ex-deputado por ele não ter projetos, competência ou conexões para garantir o funcionamento eficiente do governo, mas não estou deixando de votar nele devido à sua incompetência. Entre dois incompetentes, eu não hesitaria em escolher o menos incompetente. O que não posso fazer é escolher entre dois candidatos ou partidos aos quais tenho objeções morais, um pela corrupção, o outro pelo desrespeito a direitos que considero sagrados.

 

Condições

Quando você decide anular o seu voto, concorda em aceitar a decisão das urnas qualquer que seja ela. Isso é importante. Você não pode votar nulo apenas porque sabe que outros farão o trabalho sujo para você. Pessoalmente, decidi que votaria nulo mesmo que as chances de cada candidato fossem praticamente idênticas. Não acho que a diferença que existe entre eles seja suficiente para que eu viole a minha consciência. Deixo a decisão para os que pensam diferente.

 

Democracia é o bem maior, e a democracia e as instituições brasileiras mostraram que funcionam. Um ex-presidente corrupto está preso, políticos de todas as correntes estão presos ou sob investigação, as eleições prosseguem normalmente. Se o resultado não for o que o povo brasileiro espera, haverá outra oportunidade em quatro anos. Não vote sob a influência do medo e do catastrofismo.

 

No caso das eleições de 2018, não acredito que o Brasil irá se transformar em uma Venezuela se o PT vencer; ou em uma ditadura, caso o Bolsonaro vença. Essas são hipérboles eleitoreiras, mas o perigo maior é a deterioração da democracia. Democracia é o bem maior, e a democracia e as instituições brasileiras mostraram que funcionam. Um ex-presidente corrupto está preso, políticos de todas as correntes estão presos ou sob investigação, as eleições prosseguem normalmente. Se o resultado não for o que o povo brasileiro espera, haverá outra oportunidade em quatro anos. Não vote sob a influência do medo e do catastrofismo.

O voto não deve ser visto apenas como um processo mecânico de determinar a preferência dos eleitores. Votar conscientemente é conferir legitimidade a apenas a líderes que mereçam. Ao votar no mal menor você terá traído a sua consciência, pois conferiu legitimidade a alguém que viola seus princípios. Alguém poderia argumentar que toda a eleição é votar no mal menor. No entanto, há uma diferença entre votar no mal menor e na inconveniência menor. Esta é a primeira vez que anulo o meu voto, pois não se trata de uma questão de competência dos candidatos ou uma mera inconveniência. Trata-se de uma profunda divergência moral com ambos os candidatos. Como explicaram os filósofos acima, se você acredita que o seu candidato fará o mal, ainda que o mal menor, você será cúmplice de cada ato mau que ele faça.

 

Porque o voto nulo incomoda

O ser humano vive em tribos desde a pré-história. É a forma mais normal e atávica de organização. Governo e estado são abstrações relativamente recentes. Sob pressão, o ser humano reverte ao tribalismo. O fenômeno é claro em épocas eleitorais. Tribos diversas organizam o mundo entre nós e eles. Quem tem pensamento independente e se recusa a fazer parte da tribo é visto com suspeita. Não cabe dentro do esquema simplista do nós e eles, deixa sempre uma semente de dúvida na cabeça dos membros da tribo. Não ceda à pressão da manada. Se você tem um candidato em quem consegue votar sem violar a sua integridade, vote nele. Se não tem, vote nulo. É um voto tão ético e consciente quanto qualquer outro.

2 Comentários

  1. Desirée Colucci Martini

    Parabéns, exatamente como penso!

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  2. Maria Cristina Martini

    Correto. Parabéns pela lucidez na sua decisão.

    Responder

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