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Frequentemente as mensagens que recebo me chamam de ignorante e inculto. Não tenho como desmentir. Só acho que a acusação ganharia mais força se os acusadores usassem um bom corretor ortográfico. Sei que esse é um preconceito tolo, e luto para livrar-me dele. É claro que há gente competente que tropeça nas regras da gramática – essas “armadilhas colocadas na escadaria do sucesso, à espera dos pés do homem que vem de baixo”, como bem disse Ambrose Bierce.

Acima: A diluição homeopática C12 equivale a jogar uma gota de insumo ativo na água de todos os oceanos da Terra. E mexer bem. Praia da Comporta, Grândola – Portugal (Foto: j.colucci).

É COM PROFUNDA INDIGNAÇÃO…

Publicado originalmente no Observatório da Imprensa de 12 de dezembro de 2001. (não mais disponível online)

 

“Gostaria de submeter à apreciação do leitor uma doutrina que, receio, parecerá terrivelmente paradoxal e subversiva. A doutrina em questão é a seguinte: é indesejável acreditar em uma proposição quando não há base alguma para supô-la verdadeira. “

Bertrand Russell, “On the value of scepticism”, 1928.

 

Em agosto de 1960 a revista americana Esquire publicou o artigo O homem que escandalizou o mundo, de Helen Lawrenson, sobre o escritor Vladimir Nabokov. Uma das passagens dizia: “[Nabokov]…, claro, acha que nos bons tempos do Czar, ‘um russo amante da liberdade tinha mais liberdade do que sob Lenin’, sem, contudo, especificar se fala dos aristocratas amantes da liberdade ou dos servos amantes da liberdade”. O próprio Nabokov respondeu através de carta ao editor:

“Ironia, claro, é aceitável, mas quando esfaimada pela ignorância engasga-se com o próprio rabo; pois seguramente qualquer colegial saberia que servos não existiam na Rússia desde 1861, um ano antes da libertação dos escravos nos EUA; e os amantes da liberdade com certeza saberão que foi Lenin quem restaurou a servidão na Rússia.”

Uma carta como a de Nabokov é o pesadelo dos que escrevem para a imprensa: uns poucos parágrafos mordazes e elegantes que, com a força incontestável dos fatos, deitam por terra as pretensões do articulista.

Não corro esse risco. Ao escrever sobre pseudociência ponho-me ao abrigo de uma carta devastadora, ainda que use de ironia. Não que não receba recados; ao contrário. Meu endereço eletrônico, que torno público, é alvo conveniente para os muitos astrólogos, grafólogos, numerólogos, transcomunicadores, homeopatas e demais profissionais alternativos que consigo ofender em número desproporcional à minha modesta produção, já que não vivo de escrever. A razão para crer-me seguro vem da constatação de que bons argumentadores, já normalmente raros, são ainda mais raros entre os adeptos das pseudociências. E não poderia ser diferente, pois a arte da argumentação se alimenta da lógica.

Visando melhorar a qualidade das cartas de protesto que são enviadas ao editor ou diretamente a mim, ofereço algumas sugestões. Usarei como exemplo a grita recente contra um texto meu chamado “Manual do homeopata mirim”, publicado no Observatório da Imprensa de 5 de dezembro de 2001, mas penso que as observações de caráter geral poderão servir a outros que resolvam me esculhambar no futuro.

O artigo em questão, um comentário bem-humorado (pelo menos eu achava que fosse) sobre matéria publicada pelo caderno Estadinho, do jornal o Estado de S. Paulo, repercutiu mais do que eu poderia ter imaginado. Se de um lado recebi elogios de professores universitários, médicos, além de diversos pedidos para republicação; de outro, recebi igual número de mensagens de protesto de homeopatas e adeptos da homeopatia. Agradeço aos primeiros, mas é aos últimos que me dirijo. Se me lerem até o fim poderão protestar mais eficientemente nas próximas vezes.

 

A importância da anamnese

O mestre Hahnemann ensinava que o homeopata precisa ter “aptidão e hábito para perceber os fenômenos, dirigir todo o espírito para o assunto e perceber exatamente como é o que observa”. Está lá no Organon. Pena que os homeopatas que comentaram o meu artigo não tenham usado os princípios da anamnese homeopática ao analisá-lo, ou não estariam indignados com o fato de eu estar “usando as crianças e sua ingenuidade” para propagar as minhas idéias equivocadas.

Tranquilizem-se, senhores homeopatas, o artigo não era para crianças. Não existe a publicação infantil chamada Observatorinho, mas existe uma chamada Estadinho. Fui mais criterioso do que o jornal O Estado de S. Paulo, e não expus menor algum ao meu sarcasmo. O Estado errou. Quando se fala em homeopatia num suplemento de ciências, o mínimo que se pode fazer é citar a lei de Avogadro. Acabei chegando às crianças por via indireta. Um pediatra pediu-me autorização para distribuir o artigo entre as mães de seus pacientes, preocupado que está com o prejuízo para a saúde destes pelo abandono da medicina científica em favor de terapias alternativas.

Este foi o primeiro conselho, que aliás é de Hahnemann: não façam o diagnóstico antes da anamnese.

 

Ignorância

Frequentemente as mensagens que recebo me chamam de ignorante e inculto. Não tenho como desmentir. Só acho que a acusação ganharia mais força se os acusadores usassem um bom corretor ortográfico. Sei que esse é um preconceito tolo, e luto para livrar-me dele. É claro que há gente competente que tropeça nas regras da gramática – essas “armadilhas colocadas na escadaria do sucesso, à espera dos pés do homem que vem de baixo”, como bem disse Ambrose Bierce. Porém, aos olhos de muitos leitores, a acusação fica enfraquecida quando vem empacotada em solecismos.

Imagino que a ignorância de que falam seja específica; ignorância em homeopatia, grafologia, astrologia, etc, já que não dispõem de meios de aferir a minha ignorância em geral, esta sim, imensa. Aconselham-me a me informar, estudar vinte anos, especializar-me, enfim, antes de arriscar palpites mal informados sobre assuntos que não conheço.

Se essa lógica valesse, não se poderia criticar coisa alguma e não existiriam jornalistas e divulgadores científicos. A vida é curta demais para que alguém passe anos estudando matérias que não resistem a um teste elementar de plausibilidade. Para criticar as pseudociências é preciso, mais do que qualquer outra coisa, conhecer o método científico e saber pesquisar os bancos de dados disponíveis. Acredito estar razoavelmente aparelhado para isso.

 

Ataquem as idéias, não o homem

Sei que é difícil controlar a vontade de achar motivos escusos nos que investem contra crenças que alimentamos ao longo de anos, mas é preciso conter-se. Um pouco de raiva é saudável e nos dá energia, mas deve ser dirigida contra idéias e não pessoas. Ataquem com toda a força as idéias que considerem errôneas. As que não perecerem sairão fortalecidas. Será conveniente adotá-las. Poupem o homem.

A bem da verdade, devo dizer que na minha amostragem os homeopatas estão entre os missivistas mais educados, ainda que não totalmente inocentes da acusação de ataques ad hominem. Tento aprender com os bons jornalistas a filtrar as críticas pessoais e concentrar-me nas idéias. Acho que todos deveriam fazer o mesmo.

 

Correlação não é causalidade

É quase embaraçoso ter de repetir esse fato simples da estatística para gente que teve o benefício de uma educação superior, mas ele é convenientemente ignorado pelos praticantes das disciplinas alternativas. De novo: correlação não é causalidade.

A prática clínica torna os médicos especialmente vulneráveis a essa armadilha mental. O médico trata um paciente com a medicação X e o paciente se cura ou não volta mais ao consultório (correlação), logo a medicação X foi responsável pela cura (causalidade).

Em testes clínicos, só têm valor científico os experimentos duplo-cego, com amostras randomizadas e controles. Há evidências anedóticas a favor da homeopatia e contra ela. De um lado homeopatas e seus pacientes relatam inúmeros casos de curas de doenças que resistiam ao tratamento convencional; de outro, médicos citam casos em que o uso da homeopatia fez o paciente retardar a busca da medicina científica até que fosse tarde demais. São crianças que não foram vacinadas a conselho de homeopatas radicais e contraíram sarampo, soropositivos que não tomaram o AZT quando deviam, infecções que deixaram seqüelas por falta de tratamento com antibióticos.

Qual o valor científico desses relatos? Nenhum. A mente humana adora enxergar padrões onde eles não existem, e o único jeito seguro de não se enganar por esse mecanismo evolutivo é usar os testes controlados duplo-cego.

Como divulgador, fio-me em trabalhos de revisão ou meta-análise feitos por especialistas. Uma busca no Medline, em websites pró e contra a homeopatia e em fontes bibliográficas mostrou-me que a evidência a favor da homeopatia, quando são respeitados os protocolos científicos, é quase nula. Digo “quase” porque uns poucos trabalhos indicam vantagem da homeopatia em relação ao placebo. Se comparados ao número de estudos em que a homeopatia não funcionou melhor do que o placebo, esses estudos são ruído de fundo. Insubsistentes como moléculas de princípio ativo na potência C30.

 

Apelo à autoridade

Uma constante nas críticas que recebi de homeopatas é que não sou médico e não deveria falar do que não conheço. Ora, eles sabem muito bem que é justamente por não ser médico que posso falar da homeopatia.

A homeopatia é reconhecida como especialidade médica pelo Conselho Federal de Medicina. O médico que levantar a voz contra ela corre o risco de punições disciplinares. Poucos se aventuram. Quem acaba falando são os não médicos interessados na saúde do público.

Para não ficarmos no disse-que-disse, façamos o que os americanos chamam de cut to the chase, vamos logo ao ponto principal, sem enrolação. Para isso nada melhor do que examinarmos um documento interno, escrito por um defensor da homeopatia para um homeopata.

Em 1985, Robert G. Pinco, advogado da American Association of Homeopathic Manufacturers, escreveu em um memorando: “é possível que no futuro o FDA tente classificar as substâncias homeopáticas como ‘novas drogas’, e requerer que passem pelo processo normal de aprovação. […] Precisamos estar preparados e fazer o que for preciso para garantir a posição da homeopatia nos EUA, antes que esta seja eliminada pelos mecanismos reguladores.”

Para que uma nova droga seja aprovada pelo FDA (Food and Drug Administration), seu fabricante precisa mostrar estudos clínicos controlados e provar que ela funciona. O advogado dos fabricantes de remédios homeopáticos viu o problema com clareza: a regulamentação seria o fim da especialidade nos EUA, pois é impossível comprovar cientificamente que a homeopatia funciona.

Ainda bem, pois se fosse descoberto um princípio cuja força aumenta indefinidamente com a diluição, toda a ciência moderna precisaria ser revista.

Infelizmente, a pressão dos homeopatas sobre o FDA resultou na resolução de 1988, extremamente condescendente para com o setor. O acordo permite a comercialização de produtos homeopáticos sem receita médica e os isenta da necessidade de passar pelos mesmos testes rigorosos impostos a outras drogas. A razão, segundo o FDA, é que os produtos homeopáticos contêm pouco ou nenhum ingrediente ativo. Na minha opinião, a indústria farmacêutica ainda não protestou porque o uso da homeopatia nos EUA é insignificante.

 

Um último conselho

Alguns de vocês ameaçaram boicotar o Ig, o provedor que abriga o Observatório da Imprensa, e enviaram cópias das mensagens de protestos a vários anunciantes. Desse jeito vão me fazer acreditar que não têm argumentos. O Ig não tem nada com isso, nem precisa da minha defesa. Desconfio até que um pouco de polêmica seja bom para seus negócios.

Se a intenção da tentativa de boicote foi me atingir indiretamente, ela também falhou. A razão é que escrevo a leite de pato. Bem diluído. Lactis anatinus C12. Minha motivação é a vontade de esclarecer o público. Não tenho rancor algum contra a homeopatia, como sugeriu um homeopata com veleidade de psicanalista, nem ganho de laboratórios farmacêuticos.

O Observatório da Imprensa é um veículo livre. Escrevam. Tornem públicos os seus argumentos. Os homeopatas brasileiros têm sobre os outros especialistas alternativos uma grande vantagem: se deixarem de ser homeopatas continuam a ser médicos.

Em meu primeiro artigo sobre a homeopatia para o Observatório da Imprensa, publicado em 14/2/2001, discuti alguns problemas científicos da especialidade. Como acreditar, por exemplo, que uma gota de princípio ativo diluída em várias vezes o volume de água do Rio Amazonas possa ter efeito curativo? Como resolver o problema da contaminação, que introduz na solução uma quantidade de moléculas ativas muito maior do que o da tintura mãe? São questões que permanecem sem resposta, mas devem ser discutidas se a homeopatia tem a pretensão de ser científica.

Encerrando, permito-me um último conselho. Em deferência ao editor, não comecem as próximas cartas com “É com profunda indignação que…”. Diluam um pouco a indignação para dinamizá-la. Afinal, “quanto mais diluído mais cura”.

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SOBRE A HOMEOPATIA

Os artigos sobre homeopatia que escrevi para o Observatório da Imprensa resultaram em muita polêmica. Um que parece ter tocado num nervo sensível foi o “Manual do homeopata mirim”, concebido como uma crítica bem-humorada a um artigo do Estadão. Ele me fez ganhar uma ameaça de processo por parte da Associação Médica Homeopática Brasileira (felizmente não levada a cabo, ou, talvez, infelizmente, pois seria uma chance de expor essa crendice absurda chamada homeopatia à luz do dia) e resultou em uma tentativa de boicote ao Observatório da Imprensa. Minha resposta a essas críticas está no último artigo, “É com profunda indignação…”.

 


O Físico e a pororoca

José Colucci Jr.

Observatório da Imprensa

4 de fevereiro de 2001- Edição 108


Manual do homeopata mirim

José Colucci Jr.

Observatório da Imprensa

5 de dezembro de 2001


É com profunda indignação

(carta em resposta aos homeopatas)

José Colucci Jr.

Observatório da Imprensa

12 de dezembro de 2001

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