Continuação da polêmica com o Prof. Sírio Possenti, da UNICAMP, sobre meu artigo no Observatório da Imprensa sobre gramática e linguagem.
Acima: Graffiti em Brasília, DF (Foto: j.colucci)
ESCREVEU, NÃO LEU
Publicado originalmente no Observatório da Imprensa de 29 de agosto de 2001.
O Prof. Sírio Possenti, do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas, não gostou do texto que escrevi para a edição 133 do Observatório da Imprensa (8/8/2001). Em sua coluna no boletim eletrônico PrimaPagina (não mais disponível online), o linguista da Unicamp chama o texto de “Palpite infeliz”.
Incomoda o Prof. Possenti que, ao assinar o artigo, eu me identifique apenas como engenheiro. Peço-lhe desculpas. É que, longe da USP, onde lecionei por pouco menos de quinze anos, já esquecia o apreço que a academia tem por títulos e classificações. Declaro que sou engenheiro mecânico pela mesma Unicamp do Prof. Possenti, fiz mestrado em Bioengenharia (University of Illinois at Urbana-Champaign), um outro mestrado em Arquitetura e Desenho Industrial (USP) e doutorado em Arquitetura (USP), onde tratei de tema ligado à bioengenharia, com pesquisa de laboratório feita nos EUA. Omiti essas credenciais por considerá-las irrelevantes para o assunto tratado, mas vejo agora que não são. Explico.
Meu currículo eclético (esqueci de dizer que também sou músico amador, e fui designer gráfico e fotógrafo profissional) coloca-me em dissensão com o Prof. Possenti, já que ele acredita que engenheiros não devem opinar sobre gramática e, por extensão, sobre tudo o que não seja engenharia. Eu, de minha parte, acredito que especialização é coisa para formigas. A evolução nos deu um cérebro versátil e adaptável. Devemos tirar partido dele.
Antes que me entendam mal, devo qualificar o que disse. Seria presunção achar que o mero diletantismo autoriza qualquer um a emitir opiniões idôneas sobre assuntos complexos. Em nome da honestidade intelectual, o não-especialista deve indicar os limites de sua contribuição para o assunto. Minhas leituras em linguística e semiótica são poucas e desatualizadas, mas não são inexistentes. Por influência de meu orientador no mestrado da FAUUSP, o advogado Décio Pignatari, li Chomski, Saussure, Barthes, Peirce e mesmo a hipótese de Sapir e Whorf, este último um engenheiro, não me é desconhecida. Jamais achei que conhecimento tão limitado me autorizasse a pontificar sobre linguística, tanto que no artigo, na verdade uma crônica, declaro minha ignorância no primeiro parágrafo. Se soubesse que a minha humilde crônica seria submetida à exegese do especialista, usaria de cuidados ainda maiores; declararia minha ignorância já no título, embora duvide que o expediente funcionasse. É que o Prof. Possenti tem dificuldade com títulos.
O professor escreveu longa diatribe contra o título “Português de Menas”, pespegado pelo OI ao primeiro artigo da série. Atribuiu-o, inicialmente, ao autor – Deonísio da Silva. Descobriu o erro e retratou-se. Volta a cometer erro semelhante, ao entender que a minha crônica tem o mesmo título. Não tem. “Português de Menas” – que é infeliz, concordo – é o nome da série, a rubrica. Minha crônica chama-se “Gramático tem de ser radical”. Já que escreve para a imprensa, o professor precisa familiarizar-se com esses procedimentos jornalísticos.
Mas ao deter-me em picuinhas e maldades assemelho-me a meu crítico, coisa que quero evitar. Vamos ao que interessa.
Talvez o Prof. Possenti surpreenda-se ao saber que concordo com ele em muitos pontos. A analogia entre a língua e os organismos é limitada, como, de resto, o é qualquer analogia. Em engenharia é comum recorrer-se a analogias para entender problemas complexos. Pode-se, por exemplo, desenvolver o circuito elétrico equivalente do corpo humano. Facilita o estudo, desde que se evite o erro de pensar que o corpo humano se comporta exatamente como se fosse feito de resistores, indutores e capacitores. Deixo claro em meu texto que a analogia proposta, entre a gramática e o DNA, é apenas um exercício – um exercício que me sinto capaz de defender no formato original, não no simulacro que o professor fabricou para destroçar e sobre suas palhas bater no peito e cantar vitória.
Eu jamais atribuí aos gramáticos o papel de controlar a mudança das línguas. O que digo no texto é que aos gramáticos cabe decidir que mudanças devem ser incorporadas à norma. É frase perfeitamente neutra. Quem é que as incorporaria à norma senão eles? A partir daí a questão passa a ser outra: quem é que liga para a norma dos gramáticos? Muita gente, eu diria. Há cada vez mais gente estudando, há manuais de redação e estilo, há colunas sobre gramática nos jornais. O domínio do código verbal traz inegáveis benefícios ao seu possuidor, daí o interesse de muitos em aprender, às vezes quase como uma segunda língua, a norma culta. A repressão social responsável pelo controle das mudanças lingüísticas, de que fala o professor em sua coluna, se realimenta, entre outras coisas, na norma culta. Senão a turma escreviam assim.
Partindo do que eu não disse, o Prof. Possenti chega à conclusão, por reductio ad absurdum, de que o controle da evolução de uma espécie é exercido pelo geneticista. Minha afirmação não autorizava essa linha de raciocínio. Comparei os gramáticos a enzimas de reparo do DNA, que recuperam a informação perdida ou alterada, e, já que estamos nisso, jamais falei em meio, falei em pressões ambientais. Lá pelas tantas o professor enxerta em seu texto uma frase dizendo que falar em meio social é um resquício do velho positivismo. Assim, solta, a frase leva o leitor a crer que cometi esse pecado. Eu nunca disse isso. Esse é mais um dos tantos malabarismos que pontilham o texto do docente. Tal vício, infelizmente, é encontradiço entre os que dominam bem o código verbal, como é o caso do autor da crítica. Acham que a pena afiada os exime de cuidados na leitura.
O Prof. Possenti diz que não conheço sintaxe. É verdade, e não tenho defesa. Faltando-me os conhecimentos gramaticais do engenheiro Euclides da Cunha, ou a inventividade do engenheiro da palavra João Cabral de Melo Neto, considero-me um aprendiz. E, como tal, tenho de agradecer-lhe a gentileza de não ter apontado os muitos defeitos estilísticos de meu texto. Escolheu corrigir a interpretação que fiz de Napoleão Mendes de Almeida, mas escolheu mal. A frase “Gente simpática, mas que condescende demais com o coloquial” está mesmo errada, segundo a gramática de Mendes de Almeida. Pode ser que o Prof. Possenti discorde, mas neste caso terá de se haver com o fantasma de Napoleão, um adversário certamente mais formidável do que este engenheiro.
O professor também disse que “outro equívoco de Colucci é repetir a velha ladainha segundo a qual se lê muito pouco”. Não digo isso. Digo que pouca gente lê livros, como demonstro a seguir. Nós engenheiros temos, por deformação profissional, a mania de fazer cálculos. Mesmo quando não dispomos de dados exatos, fazemos umas contas rápidas de cabeça para ver se os números sustentam as nossas afirmações. Segundo dados da Câmara Brasileira do Livro, em 2001 publicaram-se no Brasil 329 milhões de exemplares, incluindo-se aí livros técnicos e didáticos. Em número de exemplares, isso é menos da metade do que publicaram no mesmo ano os dois jornais de maior circulação no país. Se acrescentarmos os demais jornais brasileiros, as revistas semanais, as mensais e demais periódicos concluiremos que – página por página – os livros representam porcentagem pequena do total. A hipótese aqui é de que o número de páginas lidas seja proporcional ao número de páginas impressas. Assim, as pessoas estão mais expostas ao português dos jornalistas do que ao dos escritores. Não se sabe que mudança a Internet causou nesse balanço, mas não acredito que o tenha deslocado a favor de obras literárias. A afirmação foi posta no texto para dizer que os jornalistas, por serem os referenciais, têm grande responsabilidade na manutenção da norma, e deveriam ouvir os gramáticos.
O Prof. Possenti reprova, com propriedade, o uso que fiz do termo “aleatório” quando aplicado a mudanças na língua. Cita Sapir (1921), que introduziu o conceito de deriva. Segundo Sapir, toda a língua se afasta continuamente de qualquer tentativa de normatização, desenvolvendo novas características e transformando-se com o tempo em algo tão diferente da língua original a ponto de constituir uma nova língua. Chuto a minha própria canela por não ter pensado em usar o conceito. Os organismos também derivam, e de maneira não totalmente diversa. O processo de deriva genética ocorre quando a freqüência de determinados alelos na população muda sem que haja estímulo externo. A analogia teria dado mais graça ao exercício. Ainda segundo Sapir, os dialetos aparecem quando grupos de indivíduos se desconectam do grupo principal e a língua original deriva de modo independente. O paralelo entre a formação dos dialetos e a formação de novas espécies é quase irresistível. Bastaria lembrar de Darwin e das ilhas Galápagos.
A crônica, em tom que não se pode confundir com o de um ensaio, revela a minha preferência de engenheiro por gramáticos que fixem normas claras, lógicas, mas não imutáveis. Se o professor me imagina entre os que abominam a experimentação e as formas populares, e batalham pelo vernáculo, coloca-me em companhia que não me convém. Até mesmo um engenheiro consegue curtir a recriação da locução mineira de Grande Sertão: Veredas, do médico Guimarães Rosa, ou a prosa exuberante de Catatau, do professor de história e de judô Paulo Leminski, este um dos meus favoritos. Sei que o mestre Napoleão não aprovaria essas escolhas, mas, que diabos!, quero-o para contrabalançar o bombardeio exagerado de fatores mutagênicos, não para me dizer o que ler. E quero que os descendentes literários dos autores citados continuem a estender os limites da língua.
Neste ponto do texto acho seguro adotar um tom mais pessoal. Protegidos dos leitores pela chatice da polêmica, seremos, com certeza, o professor e eu, os únicos a chegar até aqui. E já que estamos sós, permito-me a liberdade de lhe dar um conselho profissional. Quando abrir a firma de engenharia, como prometeu fazer em sua coluna, e for esboçar uma planta, não comece pelos galhos. Comece pelos frutos.
A POLÊMICA
É interessante notar nessa polêmica a cordialidade dos debatedores, em que o que está em questão são as ideias expressas no texto. Contraste essa abordagem civilizada com os ataques pessoais que o Olavo de Carvalho me faz na série “O Fantasma de Darwin“. Na falta de argumentos, a ignorância apela para a ofensa.
Duvido que o Prof. Possenti, hoje, escrevesse a mesma resposta. Afinal, muito da celebrada revolução na linguística proposta por Chomsky foi desmontado pelas evidências. De minha parte, eu mudaria o meu enfoque sobre a gramática, mas não muito.
José Colucci Jr.
Observatório da Imprensa
8 de agosto de 2001- Edição 133
Palpite Infeliz
Sírio Possenti
Prima Página – 14 de agosto de 2001
(Não mais disponível online, reproduzido aqui)
José Colucci Jr.
Observatório da Imprensa
29 de agosto de 2001
Sírio Possenti
Observatório da Imprensa,
12 de setembro de 2001
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